quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Mathias Rust - a queda de um anjo

Em Maio de 1987 houve um daqueles pequenos acontecimentos que parecem dar forma concreta a certos desejos e aspirações das populações - mesmo que mal definidos, ainda sem as palavras ou a imagem exatas. Era preciso um ato ao mesmo tempo simbólico e real para que todos dissessem: era isto, isto! E ele surgiu como uma façanha louca e incrível, com o seu quê de anjo milagroso que desce sobre a Terra: Mathias Rust, um jovem alemão de 19 anos, piloto amador, voou de Helsínque até Moscou num pequeno avião Cessna, aterrissando em plena praça Vermelha depois de iludir a defesa aérea soviética. Na altura aconteciam coisas estranhas, é certo, e poucos se atreveriam até a adivinhar o que viria a ser o mundo. Pouco antes tinha havido um encontro entre o presidente Reagan dos EUA e o presidente Gorbachov da URSS. Mas as expectativas internacionais saíram goradas: o processo de desarmamento nuclear não avançou como esperado, e a Guerra Fria continuava, apesar da perestroika. Para os que viram as imagens do acontecimento pela televisão (no tempo em que não havia internet), a proeza de Rust parecia uma vingança, uma partida infantil sobre a teimosia perra dos grandes políticos. O jovem conseguia criar uma ponte simbólica entre Leste e Oeste, e tudo neste voo - a surpresa, a juventude, a audácia - era uma promessa de vitalidade e mudança.

A verdade é que a viagem de Rust teve consequências importantes - para além de o levar à prisão durante catorze meses, na URSS. Gorbachov aproveitou a oportunidade: perante a humilhação pública internacional, convidou várias altas chefias militares a demitirem-se, o que lhe facilitou o processo de reformas em curso. A defesa russa fora atingida em cheio: embora os radares e alguns caças soviéticos se tivessem apercebido do pequeno avião, não foram capazes de o identificar, ou pareceu-lhes impossível que fosse aquilo que de facto era. Um bando de gansos, foi uma das explicações apontadas para a presença de Rust nos radares. O próprio Rust contou, em entrevista ao Washington Post, o terror que passou na sua viagem: "Durante todo o voo, eu estava em transe; era como uma experiência extra-corporal (...) Lembro-me de sobrevoar uma praia na Estónia. E disse para mim mesmo: 'Agora estou na União Soviética'". Quando um caça se aproximou, Rust teve muito medo mas, como poucos anos antes os soviéticos tinham chocado o mundo ao abater um Boeing das linhas aéreas coreanas com 269 pessoas a bordo, confiou que esse escândalo os faria pensar duas vezes antes de voltar a disparar, sem mais, sobre um avião desconhecido.

A história de Rust teve o seu tempo de antena nos media internacionais, e colocou uma grande pressão na vida do rapaz. Dois anos mais tarde, coisas ainda mais impensáveis aconteciam no mundo, e o pequeno gesto heróico passou a ser um episódio no caudal da história. Em 2007, passados vinte anos sobre o voo, os jornais lembraram-se uma vez mais dele. Que tinha acontecido entretanto ao jovem magro e pálido, de óculos RayBan acastanhados? Muitas e bizarras coisas, na verdade. De volta à Alemanha, Rust alegou objecção de consciência para não prestar serviço militar - o que estava de acordo com a sua defesa da paz, que justificara o famoso voo. Teve assim de prestar serviço cívico num hospital, e aqui começam os acontecimentos que parecem pertencer à vida de outra pessoa: apaixonou-se por uma enfermeira desse hospital e, tendo sido rejeitado, apunhalou-a na barriga, pelo que foi condenado a alguns meses de prisão. Alegou mais tarde que a prisão na Rússia, juntamente com o impacto mediático e os problemas que teve depois de regressar, o colocaram numa situação emocional muito difícil, e que não encontrava explicação para o que fizera. Depois, viu-se ainda a braços com a justiça por várias vezes: roubou uma camisola de caxemira; não pagou os móveis que uma empresa entregou em sua casa; e mais uma ou outra pequenas burlas. Casou, divorciou-se e voltou a casar. Com o dinheiro que conseguiu graças à notoriedade alcançada com o voo, diz ainda, conseguiu juntar uma fortuna razoável, e actualmente é sócio de uma empresa de investimentos na Estónia e jogador profissional de poker - ao que parece, com grandes lucros nesta última actividade. Chegou a criar uma organização - a Orion and Isis - dedicada à promoção da paz no mundo, mas o projecto deste think tank, que tinha como primeiro desafio o Médio Oriente, nunca teve grande impacto.

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